segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Desenhos em época de Guerra




O céu cinza cheirava a metal queimado e retorcido. O vento trazia de não tão longe o odor característico de tempos como este. Cheiro de fábricas, de máquinas, de guerras. A cor avermelhada no horizonte clareava a noite mais escura e também os rostos de desespero, perdidos na escuridão. Ninguém prestava atenção uns aos outros quando ouvíamos as explosões ao longe. Era quando eu mais gostava de vê-los. Suas bocas entreabriam para soltar suspiros que as vezes nem vinham. Os olhos se arregalavam e secavam rapidamente, forçando-os a fechá-los em seguida. O cansaço era visível e eu me deliciava em poder traçar-lhes toda a extensão da pele, enquanto o caos reinava imponente. Com a prancheta de papéis desenháva-lhes a feição e corria para mostrar ao meu pai, que sempre puxava o papel e jogava na lareira. Minha diversão se completava enquanto via seus rostos queimando na fábrica de fogo improvisada que meu tio preparara dias antes de viajar para o leste, de onde apareciam os clarões noturnos. Meu pai quase nunca falava de meu tio e meu próprio tio também não. Ele passava longas horas fumando um cachimbo na sacada do terceiro andar, apartamento da senhorita Luíza, que me dava doces por pintar retratos seus. Seu sorriso era o mais difícil, pois mudava a cada risco no papel e eu tinha que redesenhá-lo várias vezes. Eu nunca terminava os retratos. Ela liberava-me assim que via os olhos desenhados e eu tentava fazê-los o mais detalhados que podia, assim ganhava muitos doces para levar à quitanda do senhor Rodrigo, para vender e poder comprar um pouco de comida para mim e minha família. As grandes balas de jujuba eram as que valiam mais. Sua cor forte e a transparência de caramelo faziam-nas parecer grandes bolas de gude, prontas para disputar um campeonato de meninos, como os que ocorriam antes de meu pai tornar-se um homem sério. Antes de termos de sair de nossa antiga casa, sem poder levar nem o Bandit, nosso cachorro de estimação. Meu tio não conversava muito com a senhorita Luíza, mas vivia olhando-a de longe, como quem tem medo de falar algo indevido. Ela retribuia-lhe o olhar pouquíssimas vezes, mas cada vez que o fazia, transformava a boca triste de meu tio em um largo sorriso. Nunca consegui captar este momento, apesar de tentar por várias vezes reproduzí-lo de cabeça. Tentativas falhas. Quando meu tio partiu, Luíza não deixava-me mais pintar seu retrato e dizia-me que o olhar que eu desenhava não era mais o dela. Com isso parei de receber os doces e comecei a trabalhar na fábrica de meu pai. Eles faziam grandes máquinas para a Guerra. Máquinas de metal queimado e retorcido, às pressas. Passei cinco anos operando uma máquina que torcia metais em espirais, para grandes peças de engrenagens, até que em uma pausa de almoço um dos supervisores viu-me desenhando os rostos dos trabalhadores descansando. O supervisor não entendia os desenhos de pessoas, principalmente de meu pai, comendo apressadamente do outro lado do pátio um lanche qualquer, rodeado de outros pensamentos apresados. Ele entendia sim de desenhos de máquinas e colocou-me para treinar alguns esboços. Rapidamente aprendi a desenhar todos os metais que via na fábrica e logo comecei a criar alguns, dando asas à pássaros que não foram feitos para voar. Meus desenhos passaram de rabiscos à obras meticulosamente calculadas e analisadas por diversos times. Passava horas em meu escritório desenhando os grandes pássaros, peça por peça. Meu turno terminava no final da tarde, mas as vezes ficava até o nascer do Sol, criando e recriando. Secretamente, mantia o hábito de desenhar pessoas, com curvas majestosas e de sentimento explícito. Quase não via meu pai, mas aproveitava para roubar-lhe sentimentos em horas oportunas, como os intervalos da tarde, quando podia desenhar-lhe como queria. Em casa, era bem recebido por minha mãe, mas quase nunca por meu pai, que relutava em ver e falar com seu filho, destreinado para a luta, desenhando confortavelmente em uma cadeira acima dos outros funcionários. Ele sempre dizia que os desenhos trariam-me ruína. Após meses desenhando para nosso governo, foi ficando claro que não estávamos mais avançando e aos poucos fomos obrigados a parar de produzir as armas de guerra, em detrimento da excassez de alimentos, salários e roupas. Meu departamento foi o último a ser fechado, pois eu produzia trabalhos que podiam ser reaproveitados em outra frente. As noites solitárias na fábrica deram-me impulso para minhas melhores criações, específicas para a destruição rápida e eficaz de todo tipo de alvo. Nesta mesma época a notícia da morte de meu tio chegou à família, causando tristeza por todo o bairro e especialmente para a senhorita do terceiro andar, que já não saia mais. Com a morte de meu tio, era obrigatório o envio de outro membro da família à frente de guerra, mesmo sendo alguém inexperiente. A escolha era óbvia, eu teria de ir. Foi-me dado um fardo com roupas camufladas e também um fusil e meu treinamento começaria assim que conseguisse chegar no campo de batalha. Preparei-me da melhor forma que pude e escrevi este texto, para que minhas memórias não vivessem apenas comigo. A ele, anexo um desenho de um dos olhares de Luíza, que não consigo mais captar como captava, mas que não sai mais de minha mente.

Um comentário:

Mrs. Doll disse...

deprimente...pensativo... mto bom!

suas palavras são mto bem escolhidas! amei sua forma de escrever! ^^

voltarei mais vezes! =D